Em um momento em que chega às escolas da rede estadual do Rio Grande do Sul um conjunto de materiais didáticos, intitulado Lições do Rio Grande: referencial curricular para as escolas estaduais, é oportuna nossa manifestação com o objetivo de fazer algumas considerações sobre possibilidades de efetividade de uma ação inserida em política do campo curricular cuja finalidade explícita é a melhoria das condições de qualidade da Educação Básica pública estadual. Dada a incidência de nosso trabalho na formação de professores, fazemos alguns registros que permitam uma abertura de discussão sobre conexões entre o/um referencial curricular e certas condições do trabalho docente.
Cabe esclarecer que não entraremos em análises do conteúdo dos cadernos, em suas áreas e disciplinas. Nossa compreensão é de que o material possui méritos em sua composição e conteúdo (seleção de tópicos, forma de abordagem, uso de bibliografia de referência), assim como acontece com outros recursos pedagógicos à disposição das escolas públicas brasileiras na atualidade.
Primeiro registro: autonomia da escola
Na introdução de todos os cadernos do Lições do Rio Grande, é afirmado que “A autonomia pedagógica da escola consiste na liberdade de escolher o método de ensino, em sua livre opção didático-metodológica, mas não no direito de não ensinar, de não levar os alunos ao desenvolvimento daquelas habilidades e competências cognitivas ou de não abordar aqueles conteúdos curriculares”. O reenquadramento da margem de autonomia das escolas é reconhecido pela Secretaria de Estado da Educação. Os conteúdos curriculares, sabemos, estão articulados a teorias, metodologias e práticas, o que requer um nível de discernimento e autonomia dos educadores que não se restringe a meras técnicas de trabalho. As políticas curriculares, para serem implementadas, dependem de adesão por parte dos que vão implementá-las – neste caso, dirigentes escolares e professores. Lembremos que estamos tratando de uma política que chega às escolas encontrando um legado que não será suplantado apenas pela afirmação de que não se negocia a adoção dos conteúdos propostos. Nossa defesa é a da autonomia da escola, mas, além disso, queremos sublinhar a concepção ingênua de extinguir certa autonomia e objetivar instaurar outra por uma declaração e pela disponibilização de cadernos, estando ausentes certas condições indispensáveis para a efetividade da política.
Segundo registro: referenciais curriculares ou propostas pedagógicas e condições do trabalho pedagógico
Valorização dos profissionais da educação, insumos pedagógicos e adequada infra-estrutura física das escolas estão entre as condições de um trabalho pedagógico eficaz. A garantia destes quesitos exige gastos públicos, os quais têm estado muito aquém do necessário para recuperar déficits de condições de qualidade da educação escolar. A qualidade da educação tem ficado à mercê de ajustes fiscais do estado do Rio Grande do Sul. As escolas recebem um repasse de recursos do governo estadual que lhes disponibiliza, em média, 30 reais por aluno por ano. Esse é o principal recurso com o qual conta a maioria das escolas, o que evidencia as limitadíssimas possibilidades de prover as escolas de certos insumos para um trabalho pedagógico de acordo com os requisitos de qualidade na contemporaneidade. Outro fator é que o valor mínimo de remuneração de um professor da rede pública estadual, para 20h, é de R$ 510,00, um dos menores do país. Neste contexto, é importante lembrar que a Constituição Estadual determina que sejam gastos 35% da receita líquida de impostos do governo estadual na manutenção e desenvolvimento do ensino. Nos últimos anos, este percentual não tem sido aplicado, com perdas, em 2008 e 2009, superiores a um bilhão de reais em cada ano. A rede estadual foi encolhendo nos últimos anos: de 1996 para 2008 passou de um atendimento de 65% para 57% da matrícula na Educação Básica pública gaúcha. Com a reorganização da rede estadual no governo atual, foram fechadas escolas, foi incentivada a municipalização da pré-escola, foi aumentado o número de alunos por turma, foi reorganizada a distribuição de funções no âmbito escolar. O que tem se mostrado visível é a ligação desses ajustes com as razões do ajuste fiscal do estado, permanece invisível a maior disponibilidade de recursos para a rede estadual, bem como as razões pedagógicas ou de eficácia das ações públicas nestas ações. Os referenciais curriculares chegam às escolas numa conjuntura que dissocia o que é esperado do trabalho docente para promover certas aprendizagens e o que o governo estadual está disposto a investir na qualificação da educação e na valorização dos profissionais da educação estadual.
Terceiro registro: referenciais curriculares e políticas de formação inicial e continuada de professores
A formação inicial e continuada de professores é também requisito da qualidade da educação escolar. Sem entrar no mérito do conteúdo de diferentes diretrizes ou referenciais, nos parece urgente a abertura de diálogo para discutir política(s) de formação de professores. Propomos um diálogo interinstitucional e intergovernamental, incluindo, pelo menos, governo estadual, governos municipais, universidades e demais instituições formadoras de professores, entidades representativas das instituições formadoras de profissionais da educação, profissionais da educação e instâncias que os representam, conselhos escolares, conselhos de educação. O sucesso da implementação de políticas curriculares está estreitamente ligado a políticas que incidam na formação docente, inicial e continuada, bem como na disponibilização de outras condições, das quais fazem parte certos padrões básicos de qualidade da educação. Um conjunto de lições, isolado, não dá conta de iniciar uma inflexão expressiva no trabalho docente. É nessa circunstância que propomos o debate e que convocamos o compromisso público dos candidatos ao governo do estado para com essa futura intervenção coletiva.
Diretor da Faculdade de Educação: Johannes Doll
Texto retirado de http://www.cpers.org.br/index.php?&menu=1&cd_noticia=2518
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